OURO BRUTO
Serra Pelada em Três Tempos

Serra Pelada - 1980
Na primeira vez que fui ao garimpo, a Serra de 80 metros de altura chamada de Pelada não existia mais. No lugar havia uma cratera gigante e funda com centenas de barrancos retangulares de 3mX2m sendo cavados manualmente sem parar. O acesso aos barrancos era por escadas compridas e perigosas, chamadas de “adeus mamãe”. O medo de altura foi vencido pela empolgação de repórter fotográfico novato. Afinal, ir a Serra Pelada era o sonho de qualquer fotógrafo, e eu era o primeiro de jornal impresso a registrar o maior garimpo a céu aberto do mundo. Desci as escadas, dividindo espaço com os ‘‘formigas’’. Eles subiam no contrafluxo carregando sacos pesados de cascalho, na esperança de encontrar alguma pepita de ouro. Embaixo tive a visão de milhares de homens que pararam de trabalhar e começaram a gritar, porque me viram lá embaixo fotografando-os. Eu me senti destacado dos demais, pois estava de cara e roupas limpas. Lembrei-me de que, até 24 horas antes, jamais me imaginara dentro do garimpo de Serra Pelada. A população nesse dia era de mais de 25 mil garimpeiros que moravam em barracas improvisadas no caminho da cava.







Em pleno regime militar, tendo como presidente o general João Figueiredo, o garimpo de Serra Pelada era considerado uma questão de segurança nacional. Foi enviado como interventor o major Curió, um dos líderes do combate à Guerrilha do Araguaia que apresentava-se como o major do exército Marcos Luchini, identidade falsa usada desde a época da guerrilha – seu nome é Sebastião Rodrigues de Moura. Com homens do Exército, da Polícia Federal e da Polícia Militar do Pará, o interventor botou ordem na confusão que havia entre os milhares de garimpeiros vindos dos quatro cantos do país para tentar a sorte grande em de Serra Pelada. Curió tornou-se o imperador do lugar.













A SAGA DOS FOTOGRAMAS
Eu trabalhava no jornal Correio Braziliense e, por muita sorte, consegui ir a Serra Pelada. Estava com o jornalista Zanoni Antunes fazendo reportagem sobre um outro garimpo no Pará, o do “Goiaba”, menor que Serra Pelada, perto de Conceição do Araguaia. Lá conhecemos o Major Curió, incumbido de controlar também aquele novo garimpo. Ele nos convidou a acompanhá-lo no dia seguinte, de helicóptero, a Serra Pelada, em uma viagem de dois dias. A imprensa ainda não tinha ido ao local, exceto a TV Globo. Seríamos os primeiros jornalistas da imprensa escrita a ir a Serra Pelada. O meu colega do Correio tinha compromisso inadiável de família e voltou para Brasília. Fui sozinho fazer a reportagem. Estava no final da cobertura sobre o “Goiaba”, só contava com cinco filmes virgens PB (preto e branco) de 20 poses cada – apenas 100 fotogramas para documentar o garimpo de Serra Pelada. Controlei a empolgação e fotografei comedidamente. A reportagem rendeu duas primeiras páginas no Correio Braziliense. Fiz uma exposição na Aliança Francesa em Brasília e, no ano seguinte, publiquei na revista francesa Photo Reporter. Para ampliar as fotos para a exposição, fiquei com os 100 negativos e para não desfalcar o arquivo do Correio Braziliense, entreguei ao jornal dezenas de ampliações das imagens de Serra Pelada. Ao sair do jornal, me associei à AGIL Fotojornalismo, uma das primeiras agências independentes de fotógrafos de imprensa, e coloquei no seu arquivo todos os meus negativos, incluindo os de Serra Pelada. Em 1985, a AGIL sofreu um incêndio criminoso, até hoje não esclarecido, que destruiu a sala onde ficava o laboratório fotográfico e todo o arquivo de negativos. Cerca de 90% do arquivo ficou destruído. No meio dos filmes atingidos pelo incêndio, os negativos de Serra Pelada estavam dentro de uma pasta com folhas porta negativos, e ficaram bem chamuscados pelo fogo, mas milagrosamente, meus 100 fotogramas preto e branco ficaram intactos. Quando agência fechou, deixei o meu arquivo na casa de meu pai, o artista plástico Milan Dusek. Em 2016, um vazamento na caixa d´água molhou muitos envelopes do arquivo que continha centenas de filmes. No entanto, mais uma vez os negativos de Serra Pelada saíram intactos.

As fotos feitas em 1980, hoje totalmente digitalizadas, sobreviveram a todos esses percalços e vão durar muito tempo. Nesta época eu ainda não sabia que voltaria ao garimpo 16 anos mais tarde.
Serra Pelada - 1996



Na segunda vez que fui ao garimpo de Serra Pelada, a cratera gigante não existia mais. Em seu lugar havia um lago fundo que cobria as centenas de barrancos que antes formavam os degraus pelos quais os garimpeiros subiam e desciam. No final dos anos 1980, os motores das bombas de sucção foram inutilizados com areia e açúcar em suas engrenagens. Acreditava-se em sabotagem, pois havia pressão grande da Companhia Vale do Rio Doce, hoje Vale S.A, para que os garimpeiros saíssem de Serra Pelada. Sem as bombas canal por onde escorre a água com o rejeito do minério, sempre amanhecia submerso e gastava-se muito tempo para drená-lo e a água criava sulcos nas paredes da cava, o que aumentava o risco de desabamento. Com tanta água que se infiltrava, ficou inviável prosseguir com o trabalho. Pelo menos na cava, Serra Pelada encerrou, em 1988, sua atividade de garimpo manual. Assim, a serra que um dia virou cratera transformou-se em um grande lago.


O garimpo foi fechado oficialmente em 1992 por Fernando Collor de Mello, Em 1996, a vila que se formou ali abrigava uma população de 6 mil habitantes, quando foi anunciada a descoberta de uma nova superjazida de 150 toneladas de ouro embaixo de Serra Pelada. Três mil garimpeiros vieram de vários pontos do país e se somaram à população do vilarejo. Ao chegar a Serra Pelada, os novos habitantes souberam que a jazida descoberta pela Vale do Rio Doce encontrava-se a 430 metros de profundidade e seria feita a extração mecanizada, não sendo permitida a manual. Os garimpeiros não foram convidados para a festa: houve revolta e protestos. Cerca de 500 manifestantes bloquearam a estrada de acesso a Serra Pelada por 24 horas.
Para cobrir essa frustrada corrida do ouro, estive no garimpo em 1996 pela revista IstoÉ, com a repórter Liana Melo. Além da matéria sobre a descoberta de uma nova jazida, encontramos personagens como José Mariano dos Santos, que no auge dos anos 1980 chegou a tirar mais de uma tonelada de ouro .
ÍNDIO
Conhecido pelo apelido de Índio, José Mariano dos Santos, que foi agricultor no Maranhão, onde fazia sua lavoura de favor na terra dos outros, ficou conhecido como o garimpeiro que mais retirou ouro no auge de Serra Pelada. Os seus barrancos produziram nada menos que 1.183 quilos de ouro. Índio comprou 11 carros de uma só vez e 4 apartamentos em Belém.

Chegou a fretar um Boeing 737 da extinta Transbrasil, vazio, só para ir ao Rio de Janeiro procurar a sensual dançarina Terezinha que, junto com o cantor Sidney Magal, havia feito um show em Serra Pelada. No Rio, ficou hospedado por quase dois meses na suíte presidencial do Hotel Copacabana Palace. Em 1996, Índio não tinha mais um tostão e vivia e comia de favor em Serra Pelada. Morreu em 2015.

Em 1996 não imaginava que iria voltar mais uma vez ao garimpo. Por curiosidade jornalística, em 2019 retornei ao sul do Pará, , para saber como se encontrava o local que cerca o lago que esconde a cratera que já foi serra. Completava-se naquele momento quarenta anos que o fazendeiro Genésio Ferreira da Silva havia encontrado aflorada em suas terras uma pepita de ouro pesando 29 gramas, o que deu início, poucas semanas depois, à formação do garimpo de Serra Pelada.

Serra Pelada - 2019

Na terceira vez que fui ao garimpo, o lago que cobriu as centenas de barrancos ainda existia, com mais água e mercúrio depositado no fundo. Dessa vez decidi viajar por minha conta ao garimpo em 2019 fechando o ciclo em três momentos distintos. Não tinha a expectativa de encontrar a vila de Serra Pelada muito melhor do que em 1996. A poeira e o calor continuavam os mesmos. Os caminhos de terra batida de 40 anos atrás ainda existiam por toda parte, só que cortados por um trecho de 6 km com asfalto que cobre a rua principal. Não sobrou uma ripa para contar a história da antiga sede de madeira da Caixa Econômica Federal, que nos anos 1980 comprou a maior parte das 45 toneladas do ouro que saíram da Serra. Novidade foi encontrar um túnel gigante de 1.200 metros de comprimento que era usado para a extração do ouro e foi abandonado pela empresa de mineração canadense Colossus, que saiu de Serra Pelada em 2014.


Túnel da Colossus
Levei várias fotografias amareladas em papel, que fiz do garimpo em 1980, para mostrar às pessoas que vieram para a região naquela época e moram na vila até hoje. Queria falar com alguém que estivesse nas minhas fotos antigas, mas não encontrei. Entretanto, vários garimpeiros reconheceram antigos colegas. Lembraram seus apelidos e, às vezes, seus prenomes. Visitando a Cooperativa dos garimpeiros COOMIGASP, encontrei os antigos garimpeiros Gildásio Pereira de Oliveira, conhecido como Baiano, que chegou ao garimpo em junho de 1980, e José dos Santos Sousa, o Zezé, que chegou em 24 de abril de 1981 e se orgulha de ter feito o hino de Serra Pelada. Eles olharam bem as minhas fotos, mas não reconheceram ninguém. No entanto, ao verem a foto mais aberta tirada do fundo do buraco do garimpo, se lembraram dos nomes das áreas divididas em grupos de barrancos dentro da cratera: Tilim, Grota Rica, Pedra Preta, Serrinha, Furo 21, Sangrador da Grota Rica, Serra Vermelha e FMI.

A COOMIGASP designou um membro da cooperativa para me mostrar a região do garimpo. Durante quatro dias, o jovem cooperado e filho de garimpeiro Leandro Soares me levou em sua moto sem capacete por diversas partes do garimpo, do grande lago que era cratera até as novas cavas de garimpo manual. Mais do que um simples guia, Leandro Soares foi o “pauteiro” da minha terceira reportagem: me apresentou aos antigos garimpeiros que estavam ali desde os anos 1980, que reconheceram alguns colegas nas minhas fotos, e também me apontou diversos caminhos e histórias que sozinho eu não teria encontrado.

Em um bar de sinuca mostrei as minhas fotos de 1980 ao antigo garimpeiro Manuel Ari Nunes Ferreira, cujo apelido era Delegado. Numa imagem vertical de um homem segurando uma bateia e olhando para a câmera, ele reconheceu o personagem como sendo o Chicão, que havia morrido num trágico acidente dentro do garimpo: um trator nivelador passou com a roda em cima dele. Delegado também identificou na foto os dois primeiros formigas que estão caminhando em fila em cima do tronco da castanheira: o primeiro era o Cara Branca, que foi morto por ter se envolvido com bandidos; o segundo na fila era o Dançarino. O experiente garimpeiro também lembrou o apelido do homem de barba branca, de chapéu e sem camisa, encostado na barraca de vender carnes como sendo o Ceará, já falecido




O Adelson, também antigo em Serra Pelada e dono de um barranco atual perto da vila, reconheceu vários garimpeiros que aparecem nas fotos de 1980: o homem que está em uma barraca vestido somente de cueca e vendendo Chá de Burro (canjica) era o Riba. O homem de chapéu com uma Boroca (pequena bolsa de couro) na foto ao lado da fila de entrada na Polícia Federal foi reconhecido como sendo o poderoso Pedro Vapor, dono de vários barrancos. Em sua memória, o homem de chapéu de aba larga que aparece na foto segurando uma pedra na mão era o Evandro, já falecido. E recordou-se de que também se chamava Chicão o homem que está na foto sendo vacinado no posto de saúde .




Chico Osório, que retirou em 1982 mais de 600 quilos de ouro de Serra Pelada, é considerado o segundo garimpeiro a extrair mais ouro desse garimpo, perdendo apenas para José Mariano, o Índio. Osório, que atualmente escava um barranco nas redondezas do lago, viu as fotos de 1980 e reconheceu um colega de garimpo: na foto em que três garimpeiros estão sentados, com sandálias havaianas, o homem da esquerda é Djalma, conhecido como Cego, embora enxergasse muito bem.


Conheci o garimpeiro Antônio, um dos irmãos Arantes bastante atuantes em Serra Pelada. Expliquei o meu projeto do livro e ele me convidou para almoçar em sua casa, uma chácara um pouco afastada da vila. Naquele dia, um grupo de estudantes universitários iria almoçar lá e ele achou que seria interessante meu encontro com eles. Aceitei o convite. Os alunos eram da Faculdade de Educação, que fica no campus da UNIFESSPA em Marabá, durante viagem de trabalho de campo pela região do garimpo. A Universidade Federal do Sul e do Sudeste do Pará foi criada pela presidente Dilma Rousseff em 2013 com o intuito de permitir que jovens oriundos de comunidades indígenas, quilombolas e acampamentos de trabalhadores Sem Terra, tenham acesso ao ensino superior gratuito, fomentando a fixação de profissionais qualificados em suas regiões de origem.

Antes do almoço, mostrei minhas fotos antigas da corrida do ouro de 1980 e expliquei o trabalho que estava fazendo, ali no garimpo, para a elaboração do livro que registra três momentos distintos de Serra Pelada. Os estudantes ficaram bastante interessados. Havia ali também alguns garimpeiros antigos.

Entre eles, Seu Jorge, que ficou tão entretido com as fotos antigas que fotografou as imagens com seu celular. Ele pegou uma foto que mostrava três garimpeiros sem camisa trabalhando com a bateia na água. O da esquerda, de óculos e chapéu, reconheceu como sendo José Maria, também de apelido Ceará, que dizem ser hoje um empresário bem-sucedido em Marabá. O homem do centro da foto, de bigode, Seu Jorge disse que conhecia, mas não conseguia se lembrar do nome. Um estudante que acompanhava a cena se aproximou e falou para o garimpeiro:
− Por acaso o senhor se lembra se o nome dele era Carlindo?
E Seu Jorge respondeu:
− Claro! É o Carlindo sim, sem dúvida!
E o jovem continuou:
− Pois o nome dele era Carlindo Soares de Sousa, meu avô, pai de minha mãe.
A emoção foi geral. Debaixo de uma frondosa mangueira, o estudante Leonardo de Sousa Lopes contou, então, que mal conheceu o parente. As lembranças que tinha eram apenas por ter visto algumas fotos, pois o avô faleceu em um acidente de moto alguns anos depois de voltar do garimpo. Penso que nada acontece por acaso. Dei uma cópia grande da foto, autografada e com dedicatória, para o estudante.


” Toda essa história é sonho que nunca acaba”.
O garimpeiro Adelson ainda escava um barranco a menos de mil metros do lago que já foi serra antes de ser cava. Perguntei a ele se o sonho ainda não havia acabado e ele respondeu :
− Sonho? Isso é realidade, ainda tem muito ouro debaixo desta terra e nós vamos encontrar!


OURO BRUTO Serra Pelada em três tempos
Capa dura 21cm x 21cm
81 fotografias (51 PB + 30 COR)
136 páginas
Texto bilíngue português / inglês
Produção independente
