“Preservado em pleno corpo físico, em todo sólido, todo gás e todo líquido, em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em sombra, em luz, em som magnífico”.
(ÍNDIO de Caetano Veloso).
TODO DIA ERA DIA DE ÍNDIO

Terra a vista ! Me senti um português no ano de 1500 desembarcando na Bahia ao achar o Brasil. Ao invés de caravela um helicóptero, no lugar da praia uma plantação de mandioca na floresta amazônica, 489 anos mais tarde. Fomos cercados pelos índios nus que falavam tupi e usavam um ornamento cilíndrico de madeira no lábio inferior. Dóceis e simpáticos eles nem se importaram com a plantação destruída pelo helicóptero e foram nos abraçando e carregando nossas coisas.


Os Zo’é até os anos 80 eram uma tribo isolada composta na época por cerca de 130 índios em três aldeias situadas na região do rio Cuminapanema no norte do Pará, a 300 km de Santarém. Houve um primeiro contato com brancos em 1982 quando evangélicos americanos da missão New Tribes (Novas Tribos) fizeram a aproximação sem autorização da FUNAI . O contato foi estabelecido definitivamente em 1987 e a partir daí os índios começaram a ficar doentes e morrer com as doenças de “branco”, como uma simples gripe. A FUNAI interveio com uma primeira missão de emergência para tomar pé da situação.



Um mês depois organizou uma outra missão maior com médicos, enfermeiros , indigenistas e medicamentos para tratar da saúde dos índios. Nesta segunda missão o jornal o Estado de S.Paulo foi convidado a fazer a cobertura e eu e a repórter Eliana Lucena embarcamos nesta aventura de uma semana.


Não se sabia a auto-denominação destes índios. Foram chamados de Buré, Poturu (nome dado a madeira utilizada no ornamento labial que se chama embe’po), Poturujara (de poturu-jar – dono do poturu) ou simplesmente tribo Tupi do Cuminapanema por se tratar de um grupo falante de uma língua da família Tupi-Guarani. A matéria da jornalista Eliana Lucena publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 05 de maio de 1989 tratava esses índios como Buré. Tempos mais tarde esses índios Tupi do Cuminapanema passaram a se auto-denominar Zo’é para designar “nós indios” em contraposição aos “homens brancos” (Kirahi).


Voamos de Santarém até a base Esperança dos evangélicos da Novas Tribos a 40 km da aldeia principal dos índios tupi. Encontramos dois jovens Zo’é que tinham vindo a pé durante três dias até a base dos evangélicos. Fotografei os dois abraçando o sorridente missionário americano Paul Nagell . Eu estava tão empolgado que ao trocar de lente deixei cair no chão a 105mm que rolou para o fundo do rio. Um dos Zo’é caiu na gargalhada mas ao ver o meu desespero mergulhou no rio e resgatou a lente cheia de água marrom de terra. Embarcamos num helicóptero com os índios jovens. Em pouco tempo avistamos a aldeia principal dos Zo’é. Não tendo onde pousar o piloto desceu na plantação de mandioca fazendo um bom estrago na roça.

Os índios anfitriões gostavam de nos tocar nos braços e na barriga curiosos com a pele clara. A missão era chefiada pelo sertanista Sidney Possuelo, na época diretor do departamento de índios isolados da FUNAI. Ainda integravam a equipe o médico da Funai Dr Marcos Antônio Guimarães com duas enfermeiras além de um mateiro e o experiente sertanista João Carvalho que serviu de tradutor pois falava fluentemente a língua Tupi.. O grupo da missão da Funai trouxe comida própria que era cozinhada no local. Fomos orientados a não dar nossa comida para os índios e nem aceitar comida deles. Como as crianças eram curiosas não resisti e dei alguns biscoitos cream crackers que elas adoraram e chamaram curiosamente de “beijú”.



As crianças Zo’é pegavam sementes do milho plantado por eles, colocavam em cima da brasa e esperavam estourar para comer, o que demonstrou que eles já conheciam a pipoca.
Os “curumins” (criança em tupi) desde os sete anos começam a usar o ornamento na boca, um cilindro de madeira de cerca de 2,5 cm de diâmetro e 20 cm de cumprimento colocado numa incisão abaixo do lábio inferior que não é retirado nem para dormir, mas é lavado na hora do banho no rio.




Ficamos acampados em uma das ocas que eram abertas e protegidas apenas pelo telhado de sapê onde montamos nossas redes. O banheiro, claro, era a floresta e tomávamos banho no rio em trechos separados para banho de homens (rio abaixo) e de mulheres (rio acima).
Sidney Possuelo, chefe da missão, distribuiu alguns presentes aos Zo’é como facões e machados.

Eu e o cinegrafista Gustavo Hadba, que filmava para TV Alemã, acompanhamos um índio que entrou na mata para caçar. Ele levava um arco e duas flechas. Como estava nu, no momento em que ele foi atirar a flecha, não tinha aonde colocar a segunda flecha e a colocou entre as pernas. Além de plasticamente bonita, a foto ficou no mínimo engraçada, pois a primeira impressão que se tem é que a flecha está enfiada e não apenas colocada entre as pernas. Uma observação mais atenta vê a ponta saindo pela frente do índio.

Em 1989 os aparelhos de filmagem de vídeos eram muito pesados e além da câmera havia um BVU central de VT muito pesado. Logo no começo um dos índios se prontificou a carregar o VT de Gustavo Hadba e se tornou o primeiro operador de VT nu da imprensa.


Ações do médico e das enfermeiras que aplicaram vacinas e também fizeram uma pequena cirurgia no pé de um velho índio que estava com uma ferida bastante infeccionada e necrosando devido a uma picada de cobra.


Certa noite os Zo’é fizeram uma festa que consistia em cantar batendo no chão com as bordunas no rítmo da música . Os homens cantavam e tomavam uma bebida fermentada feita de cajá-manga. A partir de um determinado momento os homens que não paravam de cantar e beber começaram a vomitar . Depois de vomitar eles bebiam mais e depois vomitavam mais sem parar no meio da aldeia numa especie de competição quem vomitava mais, A festa durou toda a madrugada , Quando amanheceu o dia os Zo’é ainda bebiam e cantavam e vomitavam e eu atravessei o meio da aldeia pisando em um mar de vômito.



No segundo dia a minha única câmera, uma Nikon F3 que tinha muitos componentes eletrônicos simplesmente parou de funcionar devido ao excesso de umidade da floresta amazônica. Não havia trazido outra câmera e me vi no mato sem cachorro, ou melhor sem câmera. A minha sorte foi o fotógrafo da FUNAI Manoel Novaes que trabalhava com uma câmera Nikon FM totalmente mecânica que gentilmente me emprestou por várias vezes quando não estava usando. Também usei a câmera amadora tipo “xereta” da minha colega Eliana Lucena.

